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Thursday 30 June 2011

O Direito à Verdade no Brasil: Entrevista com Marlon Weichert

Repressão política na Igreja
da Candelária no Rio de Janeiro

No mês passado, o ICTJ conversou com Marlon Weichert, conhecido defensor dos direitos humanos e Procurador Regional da República, acerca do projeto de lei que cria uma Comissão da Verdade e também sobre os movimentos pela apuração e responsabilização das violações ocorridas no Brasil.

O Diretor do Programa da Verdade e Memória do ICTJ, Eduardo González, fornece dados e mais informação sobre o projeto de lei que cria uma Comissão de Verdade em “A Hora da Verdade e Justiça do Brasil”.

P. A quais crimes estamos nos referindo quando falamos sobre a necessidade de uma investigação ampla?

MARLON WEICHERT. O Brasil esteve sob uma ditadura militar entre 1964 e 1985. Durante esse período, ocorreram muitas violações de direitos humanos, como tortura, sequestro e desaparecimentos forçados. A transição para o regime democrático foi conduzida pelo governo militar mediante acordos com as autoridades civis. Esses acordos incluíram uma lei de anistia que impediu qualquer investigação ou ação penal pelos crimes cometidos no Brasil.

P. Você acredita que as investigações devam ser realizadas dentro do sistema de justiça ou há espaço para uma Comissão da Verdade?

R. Acredito que o Brasil deva fazer as duas coisas. Existe a necessidade de promover ações penais contra aqueles que cometeram as violações aos direitos humanos bem como de estabelecer uma Comissão da Verdade já que as ambas têm objetivos distintos. Uma Comissão da Verdade tem como foco a responsabilidade institucional em explicar para o país o que aconteceu, por quê aconteceu e como superar o passado. Uma ação penal, por sua vez, tem como foco a responsabilidade individual.

P. Você diz que a criação de uma Comissão da Verdade serve para cumprir a obrigação de lembrar o passado, uma obrigação de dizer a verdade sobre o ocorrido no passado. Qual a importância disso na sociedade brasileira atual?

R. A transição, no Brasil, foi construída com base no esquecimento. Isso é um erro porque dessa forma não podemos avaliar o passado ou discutir o papel que as forças de segurança devem desempenhar na nossa sociedade. Como resultado disso, a maioria das polícias e forças armadas atua hoje sob as mesmas bases que atuavam durante o regime autoritário.

Ao revelar a verdade, teríamos a oportunidade de entender o que aconteceu e examinar a fundo as razões e as maneiras pelas quais o governo se voltou contra a sua própria população. Precisamos confrontar o nosso passado para acertar no presente e no futuro. Isso nos ajudará a completar o nosso processo de transição e a fortalecer os direitos humanos.

P. O Brasil foi um dos últimos países na América Latina a reconhecer ou investigar as graves violações aos direitos humanos. O que mudou para permitir que isso acontecesse agora?

R. Apesar do Brasil apenas agora confrontar o seu passado, acredito que nunca é tarde para isso. Outros países constituíram Comissões da Verdade tardiamente e fizeram um ótimo trabalho. O Canadá, que estabeleceu uma Comissão da Verdade para investigar as questões relativas às populações nativas, é um bom exemplo disso.

Acho que agora é um bom momento para investigar as violações aos direitos humanos ocorridos durante a ditadura. A nossa democracia e instituições públicas estão consolidadas e não há risco de prejudicar a estabilidade alcançada. Não precisamos mais temer as consequências de descobrir a verdade.

P. No ano passado, a mais alta corte do Brasil manteve a interpretação da Lei de Anistia de 1979 que protege os que cometeram violações aos direitos humanos. No entanto, uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos constatou que a Lei de Anistia de 1979 violava as obrigações de direitos humanos do Brasil. Como isso foi recebido pela comunidade de direitos humanos no Brasil?

R. O Supremo Tribunal julgou que a Lei de Anistia de 1979 está de acordo com a Constituição Brasileira de 1988 e 1969 apesar dela conceder anistia àqueles que cometeram violações aos direitos humanos.
Atualmente, muitos advogados e procuradores como eu defendem que o Supremo Tribunal deve observar a decisão da Corte Interamericana. No entanto, o Supremo Tribunal argumenta que essa não era uma questão que deveria ser interpretada por uma corte internacional por estar fora de sua competência temporal.

Em dezembro do ano passado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos examinou um caso sobre a lei de Anistia do Brasil aplicada à Guerrilha do Araguaia e fixou a sua competência para julgar a impunidade sobre os crimes cometidos durante a ditadura. A corte julgou que a lei de Anistia não poderia ser interpretada para proteger aqueles que cometeram violações aos direitos humanos.

O Supremo precisará agora rever essa decisão. Caso contrário, o Brasil adotará uma postura indefensável. Como líder no continente e ator importante em organizações internacionais como a CIDH e outras organizações latino-americanas de direitos humanos. Como pode então o Brasil desconsiderar uma decisão da corte? Devemos nos juntar à Argentina, ao Chile e ao Uruguai no entendimento de que as leis que promovem a impunidade são inválidas.

P. Você recentemente redigiu um parecer para o Ministério Público Federal sobre o projeto de lei que cria a Comissão da Verdade indicando pontos para melhoria. A fim de estabelecer uma Comissão da Verdade justa, eficaz e independente, quais são os principais elementos que devem ser abordados?

R. Assim como a CIDH julgou no caso Araguaia, acreditamos que a Comissão da Verdade deva ter autonomia do governo. Além disso, ela deve ser isenta. Isso significa que membros das forças de segurança e mesmo as vítimas não devam fazer parte da sua composição. A autonomia começa com a nomeação dos membros, mas ela também depende das condições sob as quais a comissão trabalhará. O Estado deve garantir os recursos humanos e as condições materiais para o desempenho do mandado da comissão.

P. De acordo com a proposta atual, como será formada a comissão e como será feita a escolha de seus membros?

R. A proposta do governo é que o Presidente nomeie os membros da Comissão. Os nomeados devem ser renomados defensores dos direitos humanos. Mas no momento não há nenhuma proposta para a participação pública nesse processo de nomeação. Acreditamos que as nomeações para a comissão devam ocorrer por meio de um processo público pelo qual entidades e a sociedade civil possam opinar sobre a seleção. Devemos dar à sociedade a oportunidade de expressar a sua opinião sobre os membros da comissão.

P. Para que as Comissões da Verdade sejam eficazes, é importante que haja um clima de mudança e a oportunidade para que a verdade toda possa emergir. Existe hoje uma cobrança para que seja revelada a verdade sobre a ditadura no Brasil?

R. Nós temos uma demanda pela verdade aqui. Como havia mencionado anteriormente, nós transitamos em torno de uma mentira, em torno de uma proposta de perdão e silêncio. Mas as pessoas querem saber o que ocorreu. Precisamos mudar. Algumas vezes chego a pensar que a sociedade brasileira acredita que a violência é lugar comum. A polícia foi violenta no passado, é violenta hoje e continuará a ser no futuro. Devemos questionar esse tipo de pensamento. Se revelarmos para a sociedade a violência ocorrida no passado e os danos causados para toda população e também o que significa respeitar e proteger os direitos humanos, isso pode mudar.

Países que buscaram a verdade e alcançaram a justiça hoje gozam de uma vida melhor, um maior respeito pelos direitos humanos. É hora de o Brasil buscar isso. É claro que cada país deve fazer isso à sua própria maneira. O Brasil está buscando a sua. Mas o que não podemos é privar a sociedade do direito à sua história, de saber o que aconteceu e porque aconteceu para que nunca mais se repita.

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